Um modelo de texto narrativo bem escrito


Vamos começar? Você tem acompanhado os últimos artigos e sabe que estamos planejando um texto narrativo. Vamos agora à prática. O texto abaixo é um modelo que se produziu a partir dos dados.

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Leia-o com atenção:

Livros, esbarrões e o dilúvio

Impossível esquecer como tinham se conhecido: num desses esbarrões do destino ela o vira numa feira de livros, sorrira sem jeito quando ambos levaram a mão direita para apanhar o mesmo- livro na estante; e balançara os cabelos de um lado para o outro: cabelos fogaréu, como teria dito Mário de Andrade...
Mais tarde, uma outra estante e o mesmo gesto:
-Não há mesmo jeito, - disse-lhe ela sorrindo e mostrando os dentes grandes e brancos - é melhor que eu convide você para um café.
Ele aceitou encabulado, silencioso, os cabelos começando a embranquecer nas têmporas, e diante da xícara enorme e do dia quase frio lá fora — ah, como chovera naquele dia! —contou-lhe que pesquisava sobre literatura existencialista. Era professor numa universidade. Era professora numa universidade. Era setembro no mundo.
Pois ela tinha acabado de defender uma tese sobre literatura existencialista e quase gritara de alegria diante dele, gostava da conversa amena, simples, tantas coisas em comum.
No fim da tarde, correram debaixo da chuva, cada um para o seu carro, os telefones trocados, os e-mails também.
E passaram a se falar todos os dias, por telefone ou e-mails, trocavam textos, informações sobre livros. Até que ele lhe telefonara em pleno domingo, ela com o marido e filhos esperando, ele com mulher e filhos esperando, e disse:
-Preciso ver você, ou você aparece aqui - deu-lhe o nome do shopping - ou eu atravesso o carro na 23 de Maio, espero você passar. Endoideci...
Ela riu, mas foi.
E se beijaram em plena avenida, ao sol do domingo pleno de fim de setembro.
A descoberta do amor maduro, fora de época, tornou-os quase meninos, outra vez meninos: namoravam nos parques, nos sebos e nas bibliotecas. Mandavam-se cartas apaixonadas; ele ria, fora tão duro a vida inteira e agora, dizendo assim eu te amo?
E ela se afligia, tão desesperada, sem saber como agir e que rumo tomar. Ah, onde é que você estava escondido, meu amor?
Foi aí que a mulher dele soube de tudo, a net aberta, um e-mail aparecendo na tela. E exigiu que ele deixasse a outra, ah, eu aposto que é uma mulher vulgar, você não se envergonha, não? Um homem da sua idade, com filhos adolescentes, belo exemplo de pai!
Aos poucos, afastara-se dela. Aos poucos apagara-se nela o sorriso: mensagens poucas, telefonemas suspensos. Ele se protegendo, sem querer criar impasses.
Ruiva, sozinha, estivera em outras feiras de livros, mas eleja não estava lá. Tinha ido à Europa, numa espécie de viagem de lua-de mel com a mulher. Ela chorara quando soubera.
Mas, se apertava a saudade, lia a mensagem de que mais gostava: "Nós temos histórias, segredos e medos.
De nos perdermos um do outro o maior deles..."
Ele, o homem, aparecia de vez em quando, fugindo da desconfiança da mulher que agora o cercava, vigiava. Afilha não falava com ele, o filho tinha ido estudar fora... Ele, refém das duas que o vigiavam no escritório, passava dias sem mandar mensagens.
Até que ela explodiu num acesso de raiva:
-O que sou pra você?
Ele abaixara a cabeça, envergonhado, infeliz, covarde. Nada respondera.
E, por fim, debaixo de uma chuva torrencial, depois de um café, tinham se afastado. Não saberiam nunca, mas qual amor não é para sempre ?
Ela mudara o e-mail, de trabalho, deixara o marido. Os filhos tinham crescido tão de repente e foram estudar fora. Voltaram casados, vivendo suas próprias vidas.
Pensava nele todos os dias, via um e outro artigo publicado nos jornais e fora a um lançamento de um livro. Não a vira, não se aproximara. Apenas percebeu que os cabelos dele tinham ficado mais brancos.
Chuvas e anos se passaram.
Tinha ouvido dizer que a mulher o abandonara. Pensara: "De nos perdermos um do outro o maior medo..." Perderam-se.
Ele teve vergonha de procurá-la. Mas de vez em quando abria os arquivos do computador e dava com ela lá, ruiva, os dentes brancos, o sorriso mais que perfeito. Já não se reconhecia no espelho, e, ao vê-la, ali sorrindo, soluçava muitas vezes. Porque haviam se perdido?
Tinha chovido o dia inteiro, ela ficara ali, em casa, era um sábado sem visitas. Lera quantas vezes hoje a mensagem dele? Enovelara-se no sofá, pensando em coisas que ambos viveram juntos, por que haviam se perdido ? Ele ainda ali, dentro do coração dela, ela ainda ali, inteira, no coração dele...
Deu um salto, enxugou os olhos, calçou os sapatos, penteou os cabelos. Na garagem, já se sentia aliviada, nem deu pela chuva, pelo trânsito.
Entrou na feira de livros, levou a mão à estante e... duas mãos, juntas, esbarraram docemente contra a capa colorida do livro sobre literatura existencialista.
Ela agitou os cabelos de um lado para o outro, ainda tinha os cabelos fogaréu. Riu. Ele, tímido, os cabelos agora mais brancos, convidou-a para um café.
Sentados ali, quase sem falar, nem viram que a chuva era quase um dilúvio naquele fim de tarde. Só se deram conta, vagamente, que no mundo era setembro outra vez.

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