Pode-se mesmo ensinar a ler textos?


Temos ouvido essa pergunta muitas vezes. Alguns nos dizem que é autoritário levar os alunos a fazer determinada leitura de um texto e que, portanto, o professor deve incentivá-los à discussão sobre o texto e aceitar tudo o que disserem.

Comecemos por separar o joio do trigo. É verdade que um texto comporta várias leituras. Falo disso num artigo lá no Curso Português Pra Passar. Os textos que apresentamos devem ser discutidos.
Nossa leitura é uma entre as muitas possíveis. No entanto, não se pode aceitar toda e qualquer leitura. Há limites para a interpretação. Umberto Eco, na primeira página de seu livro Os limites da interpretação, conta a história de um escravo indiano, que, encarregado por seu senhor de levar uma carta e um cesto de figos a um certo destino, comeu uma grande parte da carga no caminho e entregou o resto à pessoa a quem ela tinha sido enviada. Esta, depois de ler a carta, não encontrando a quantidade de figos anunciada, acusou o escravo de os ter comido, contando-lhe o que a carta dizia. O escravo negou o fato, injuriando a carta e acusando-a de falso testemunho.

miniatura-A redação subjetiva os temas subjetivos

Algum tempo depois, tendo sido outra vez enviado com uma carga idêntica, acompanhada de uma carta que indicava o número exato de figos a entregar, o escravo comeu, novamente, uma boa parte das frutas, mas, antes de tocar nelas, pegou a carta e escondeu-a debaixo de uma grande pedra, para que, segundo pensava ele, ela não o visse comer os figos e não o acusasse dessa falta. Tendo sido de novo acusado de comer os figos pelo destinatário, ele confessou sua falta, admirando a divindade do papel.

O que Eco pretende dizer com essa fábula é que o texto tem um núcleo de interpretação possível e não é o leitor que lhe atribui um sentido qualquer. Mesmo que esse texto fosse uma mensagem cifrada ou tivesse um sentido simbólico, haveria algumas leituras possíveis e outras não. Ensinar os mecanismos constitutivos do sentido do texto não é impor uma única leitura, é ensinar os limites da interpretação. É isso que este livro pretende fazer.

Cabe ainda uma última advertência sobre a questão do autoritarismo das leituras autorizadas. Dizer que todas as leituras são possíveis é afirmar que o texto do outro não existe, porque posso sempre pôr no lugar dele meu texto. Só uma sociedade que levou o individualismo à exacerbação poderia pensar que o meu sentido predomina sobre o do outro. Os autores deste livro partilham da ideia de que o sentido é social e de que, portanto, o outro, que se manifesta num texto, não pode ser ignorado.

Por último, lembro-me de forma saudosa de uma professora nos tempos de faculdade ainda. Dizia ela que os textos admitem várias interpretações, mas não todas as interpretações. Se ela já sabia o que Umberto Eco dizia, não sei.

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